Desde o século II, além de se continuar celebrando “o primeiro dia da semana”, como sendo o “Dia do Senhor”, procurou-se solenizar de um modo todo especial, dentro do ano litúrgico, o domingo que coincidia com a Páscoa da Ressurreição, isto é, o primeiro domingo após a comemoração da páscoa judaica, que acontecia na lua cheia da primavera e na qual Cristo celebrou a Última Ceia na véspera de sua Morte e três dias antes da sua Ressurreição. Nasce liturgicamente a Semana Santa. E já no século IV, Santo Agostinho recomendava vivamente a seus fiéis a vivência do Tríduo Santo ou Tríduo Pascal.
A missa vespertina da Ceia do Senhor dá início a celebração da Páscoa cristã, em que Jesus inaugura a nova e eterna Aliança pelo seu sangue a ser derramado na cruz. Cristo se nos entrega como Pão partilhado na expressão do amor levado ao extremo – e “à loucura para os gentios” no dizer de Paulo (1Cor 1, 18) – e na manifestação plena do serviço e da humildade ao lavar os pés dos seus discípulos. Para plenificar ainda mais esse legado, o Senhor instituiu a Eucaristia como prova maior de sua doação para com a humanidade. Não só se fez presença, tornou-se alimento. Não apenas nos libertou, ensinou-nos a libertar os outros e o mundo. Eis a páscoa nova, diferente e mais importante daquela que os hebreus celebraram, comemorando sua vitória da escravidão do Egito! Jesus reconquista para os que creem a liberdade da condição de filhos de Deus, dignos de seu amor e sua misericórdia. Valemos muito. Assim entendemos o que se canta no “Exultet” do sábado santo, ao se proclamar com imensa alegria: “ó pecado bem-vindo que há merecido a graça de um tão grande Salvador.”
Na sexta-feira santa, em respeito e homenagem à maior de todas as missas e de todos os sacrifícios imolados sobre a face da terra: a Morte de Cristo, não se celebra a Eucaristia. Nesse dia, celebra-se o amor de Deus, que é vida e tem mais poder do que o pecado e a própria morte. Jesus mostra-nos que a realidade da morte é a passagem para a libertação plena, a páscoa definitiva. A cruz sangrenta de Cristo, dolorosa e injusta, transforma-se em vitoriosa e resplandecente. A morte de Cristo é o símbolo do fim de uma antiga aliança, do velho homem e início de uma vida nova. Comungamos com o mistério da cruz que nos salva, com o mistério da cruz na qual sofrem muitos de nossos irmãos e também com o mistério de nossa própria cruz, que unida à de Cristo, será redentora.
Esses sentimentos dão lugar ao simbolismo da vigília pascal. O sábado santo é a festa da luz. Benze-se o fogo novo, imagem de Cristo que brilha para todos nós como novidade, luz e vida. “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8, 12). Há igualmente na cerimônia dessa noite a bênção da água. Com Cristo renascemos para uma vida nova. “Necessário vos é nascer de novo” (Jo 3, 3), disse o Mestre a Nicodemos. Entendemos desta forma a inserção do sacramento do batismo na celebração do sábado santo.
A Semana Santa é, pois, esse apelo para a descoberta mais profunda de Cristo, vítima de uma sociedade injusta que mata inocentes e indefesos. Jesus desconcerta-nos mais uma vez, mostrando-nos que o projeto de Deus é diferente. A uma sociedade competitiva, que privilegia a concentração de bens e poder, gerando discriminação e violência, alienando pessoas e marginalizando outras, Cristo acena com o despojamento capaz de trazer a paz para o ser humano. A um mundo que procura desconhecer os laços de nossa fraternidade, Ele aponta a força da solidariedade, que salva vidas e traz esperança, como fizera com todos, os mais desprezados e despossuídos, simbolizados pelo bom ladrão ao pé da cruz. “Completo em minha carne o que faltou às tribulações de Cristo” (Cl 1, 24)
Padre João Medeiros Filho
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