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Foto do escritorAldemar Almeida

Estudo aponta cláusulas abusivas em contratos de eólicas com pequenos proprietários rurais

Há sete anos, o pequeno produtor rural A., de 37 anos, morador de Santana do  Matos (RN), tem dificuldades para dormir. Em 2016, a empresa Horizonte Energias Renováveis passou a instalar torres de geração de energia eólica na região, mas não só o barulho dos aerogeradores, que ele desconhecia, tem tirado seu sono. O contrato de arrendamento assinado por ele para a instalação de aerogeradores

em sua propriedade tem cláusulas consideradas irregulares ou abusivas por especialistas.

 

Uma delas, por exemplo, diz que o aluguel que ele recebe pode variar de acordo com o ganho da empresa com a venda da energia produzida, o que repassa ao pequeno agricultor parte do risco de um grande empreendimento. Outra prevê

que a companhia pode compensar despesas que julgue indevidas com descontos

na remuneração mensal. A história de A. não é um caso isolado. Um estudo  publicado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em outubro de 2023, mostra que essas e outras cláusulas questionáveis são comuns em contratos

de arrendamento de eólicas no interior do Brasil. Segundo a pesquisa, o atrativo

de um pagamento mensal fixo, associado ao medo de “perder uma oportunidade” por parte de agricultores, permite que grandes empresas imponham exigências desequilibradas aos arrendantes — ou, nos termos do relatório, façam uma espécie de “chantagem”.

 

Arrendamentos longos demais com renovação automática, remunerações abaixo do mercado, multas exageradas e punições voltadas apenas

aos donos da terra que recebe as torres são alguns dos problemas apontados. A pesquisa analisou cinquenta contratos do setor e abordou como foram feitas as negociações.

 

OGLOBO teve acesso a sete contratos de arrendamento desse tipo registrados na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Cinco deles

têm prazos considerados exorbitantes por especialistas consultados, chegando a 49 anos.

Everaldo Cassiano, de 50 anos, agricultor do município de Cuité, na Paraíba, conta que uma empresa de energia chegou ao assentamento onde vive para arrendar parte da propriedade em 2021. O prazo o deixou preocupado: O documento dizia (que

a duração era de) 49 anos, podendo ser renovado automaticamente por mais 49 anos. Eu tenho 50 anos. Daqui a 49, se eu estiver vivo, vou estar bem velhinho. E meus filhos? Outro contrato, assinado pela Renova Energia na cidade de Caetité, Bahia, em 2011, tinha duração de 35 anos, renováveis

automaticamente por mais 35. O descumprimento

de qualquer cláusula levaria a uma pena de R$ 5 milhões contra o arrendante. Mais um documento, da empresa Casa dos Ventos, no município de

Araripina, Pernambuco, prevê duração de 49 anos, renováveis automaticamente por mais 22 se as partes não se manifestarem nos seis meses antes

do fim da vigência inicial.

 

SEM ESPAÇO PARA AJUSTES

O advogado especializado em direito empresarial Gabriel Britto explica que, legalmente, não existe um limite para a duração de contratos de arrendamento. Mas, ele acrescenta, acordos que duram por décadas e envolvem empresas de grande poder econômico e produtores rurais vulneráveis sem assessoria jurídica acabam sendo onerosos demais para os arrendantes. A advogada Lays Marques Bizarria, sócia do escritório VNP Advogados, pondera que os contratos precisam durar o bastante para que a empresa tenha o retorno do investimento. É normal que os prazos superem os vinte ou trinta anos. Mas, para o advogado e consultor em direito socioambiental Rárisson Sampaio, que acompanha a situação das comunidades impactadas por eólicas, ter em conta apenas essa questão pode prejudicar os interesses dos donos de terra e minar o conceito de que eles e as empresas devem ser equivalentes no acordo: —O argumento da legalidade da duração interessa unicamente ao empresariado. Se o contrato for muito longo, deveríamos estabelecer períodos de ajustes, para melhor retorno financeiro para as famílias. Procurada, a Renova disse que o setor de infraestrutura é caracterizado por investimentos elevados e de longo prazo. Os contratos, diz, espelham a proporção de prazo e investimento e “seguem em linha com toda a indústria eólica (e dentro do padrão mundial)”.

 

A CDV Desenvolvimento,do Grupo Casa dos Ventos, diz que os contratos citados, fechados há mais de uma década, refletem as políticas remuneratórias da época. “A companhia aperfeiçoou o seu modelo contratual, adaptando- o às diferentes demandas identificadas no diálogo com as comunidades”, diz em nota.

 

Em relação aos prazos de duração, a empresa diz que os contratos seguem um padrão médio de 35 anos, devido ao

tempo de outorga assumida com a Aneel. A Horizonte não respondeu os questionamentos do GLOBO.

 

DE PORTA EM PORTA

Everaldo, por ser presidente do assentamento em Cuité,assinaria o contrato em nome de todos os que vivem nas terras.

Quis, portanto, marcar uma reunião com os demais moradores para que deliberassem juntos. Já a empresa preferia ir de casa em casa conversar com os assentados individualmente. No fim, não houve acordo e o contrato não foi assinado.

 

Cássio Carvalho, um dos pesquisadores responsáveis pelo estudo do Inesc, afirma que o primeiro obstáculo para

encontrar os contratos problemáticos são as cláusulas de confidencialidade milionárias, que impedem os arrendantes

de falar sobre o assunto. São pessoas que, segundo ele, muitas vezes sequer sabem ler os termos do acordo. Dessa forma, as promessas financeiras podem ser elusivas.

 

—Para donos de terras que têm poucos hectares, as empresas falam: “você pode complementar a sua renda em até RS 3 mil por mês”. Quem sente o impacto das secas e mudanças climáticas não vai recusar essa proposta — afirma o pesquisador, acrescentando que cláusulas sobre descontos nos pagamentos nem sempre ficam claras para o arrendante.

 

Além dos aerogeradores, as empresas costumam instalar na propriedade medidores de vento e cercas para que os animais, ou até mesmo os donos da terra, não se aproximem dos equipamentos. Um contrato da Voltalia, de 2023, define que, caso a empresa não consiga remover essas estruturas ao término do acordo, elas podem ser mantidas no terreno sem que o proprietário receba por isso. Segundo a geógrafa Mariana Traldi, do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), alguns contratos incluem limitações da circulação na região da propriedade.

 

Roselma Melo, de 35 anos, é dona de um terreno em Caetés, em Pernambuco, que fica entre dois parques eólicos. As

primeiras torres foram erguidas ali há cerca de dez anos. Ela diz que parou de plantar em uma parte das terras próxima aos aerogeradores instalados nos terrenos dos vizinhos: —Empregados da empresa me disseram que, se eu cavasse ali, poderia levar um choque.

 

Problema similar é relatado na comunidade quilombola potiguar Cabeço dos Ferreira, cercada por torres de energia

em terrenos contíguos. Outro ponto questionável do contrato da Voltalia, segundo o advogado Gabriel Britto, é a previsão de que o pagamento ao arrendante é calculado como um percentual sobre o resultado da venda da energia em vez de um aluguel fixo, que é o que atrai os agricultores. Na visão dele, a cláusula desconsidera a disparidade de poder econômico entre a empresa e o pequeno produtor rural.

 

No entanto, advogados familiarizados com contratos de arrendamento consultados pelo GLOBO divergem. Lays Marques Bizarria argumenta que o risco do empreendimento pode ser compartilhado entre as duas partes, desde que acordado contratualmente, porque “o dono da terra não é o elo mais fraco (da relação)”.

 

DIREITOS E DEVERES

 

Rárisson Sampaio lembra que parques eólicos normalmente são instalados sem medidores no local. Portanto, os donos da propriedade não têm meios de aferir a produção dos aerogeradores em sua propriedade. Dependem dos dados das empresas. Britto insiste em lembrar que a maioria não tem acesso aos mesmos recursos financeiros e assessoria jurídica das geradoras de energia. —Há uma hipossuficiência econômica, geradora da hipossuficiência

jurídica e técnica, e, em última análise, há uma vulnerabilidade para que uma parte tenha o máximo de direitos e reste à outra o máximo de deveres — argumenta o advogado, que não vê nesses contratos uma parceria comercial convencional. — Os donos da terra não querem ser parceiros comerciais de qualquer empresa, não querem vender energia, não querem que seus filhos e netos estejam vinculados a qualquer contrato no futuro e nem querem deixar de receber qualquer valor.

 

A única coisa que buscam é dinheiro para subsisti. Há controvérsias ainda sobre a prospecção das empresas antes da instalação das torres. Uma minuta de contrato apresentada pela Minuano do Ibirocaí a um produtor rural em 2023, por exemplo, prevê um período inicial de estudos de seis anos no local, no qual valeria uma cessão não onerosa de uso da terra, ou seja, sem que a empresa fizesse pagamentos.

 

Esse período poderia ser prorrogado por dois anos. Caso a empresa resolvesse não instalar o parque eólico, ficaria isenta de qualquer indenização ao dono da terra. Para Sampaio, acordos para a fase de estudos de empreendimentos de usinas eólicas são inadequados: —Se vai usar a terra com finalidade de proveito econômico, como forma de justiça, o contrato precisa ser oneroso.

 

Claudio Mauro Henrique Daólio, sócio do escritório Moraes Pitombo Advogados, diz que esse formato é bastante usual para projetos eólicos, sem previsão de indenização: —É possível, no entanto, pedir um seguro durante o uso. O GLOBO não conseguiu contato com a Minuano. A Voltalia não respondeu.

Fonte; O Globo

 

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